Cyberpunk: mais cyber menos punk
Cyberpunk moderno continua esquecendo o ‘punk’, os trabalhos cyberpunk modernos estão trazendo o ciberespaço, mas continuam esquecendo os laços antissistema do gênero.
O que é Cyberpunk?
Segundo a Enciclopédia Britânica, Cyberpunk, é um subgênero de ficção científica caracterizado por anti-heróis contra culturais, presos em um futuro desumanizado e de alta tecnologia.
A palavra cyberpunk foi cunhada pelo escritor Bruce Bethke, que escreveu uma história com esse título em 1982. Ele derivou o termo das palavras cibernética, a ciência de substituir as funções humanas por informatizadas, e punk, a música cacofônica e sensibilidade niilista que se desenvolveu na cultura jovem durante os anos 1970 e 1980. O editor de ficção científica Gardner Dozois é geralmente considerado o responsável pela popularização do termo.
As raízes do cyberpunk vão além da história de Bethke à ficção tecnológica dos anos 1940 e 50, aos escritos de Samuel R. Delany e outros que abordaram temas de alienação em um futuro de alta tecnologia e às críticas de Bruce Sterling, que nos anos 1970 apelou para a ficção científica que abordasse as preocupações sociais e científicas da época. No entanto, só com a publicação do romance Neuromancer de William Gibson em 1984, o cyberpunk decolou como um movimento dentro do gênero. Outros membros da escola cyberpunk incluem Sterling, John Shirley e Rudy Rucker.
O Cyberpunk moderno
Muitas obras modernas do cyberpunk tem recheado seus filmes, shows, jogos e animes com cibernética, mas esquecem o elemento chave do cyberpunk: o punk. O principal apelo do cyberpunk para o público nos anos 80 era destacar como a tecnologia falhou em tornar a vida melhor. Na verdade, muitas vezes piorava as coisas. As obras originais do cyberpunk giravam em torno de hackers e heróis anônimos, que eram capazes de navegar pelo ponto fraco de um mundo controlado por grandes empresas e computadores.
Embora existam trabalhos brilhantes de ficção cyberpunk, muitos trabalhos de destaque dos últimos cinco anos usam o estilo do cyberpunk sem sua substância. Por exemplo, Cyberpunk 2077 existe como uma antítese completa aos temas introduzidos em obras como Neuromancer de William Gibson, um fato que o próprio Gibson comentou, por que o cyberpunk moderno não tem “pegada”?
Embora temas semelhantes aos vistos no gênero cyberpunk tenham sido abordados previamente, o movimento decolou graças a uma combinação de duas obras de ficção: Blade Runner, a adaptação de Ridley Scott do romance de Philip K. Dick, Androides sonham com ovelhas elétricas? (Do Androids Dream of Electric Sheep?) e as obras de Gibson, mais notavelmente seu romance Neuromancer e seus contos publicados originalmente na revista OMNI, que mais tarde foram publicados no livro Burning Chrome.
No fundo, o cyberpunk questionava as autoridades, como vimos com o personagem Deckard em Blade Runner. Ele é policial, mas as “pessoas” que caça estão sendo perseguidas pelo crime de querer viver. Enquanto isso, Henry Chase em Neuromancer é um cowboy do ciberespaço e hacker da Matrix. Como punição por tentar enganar os patrões, seu sistema nervoso foi contaminado por uma toxina que o impede de entrar no mundo virtual. Ele é amarrado por autoridades em uma série de eventos que revelam as estruturas mecânicas do Sprawl, que é o nome da megacidade composta pela junção de todo o terreno urbano existente entre Boston e Atlanta, incluindo Nova York e Washington, nos Estados Unidos. Em ambos os casos, a autoridade é frequentemente corrupta, a humanidade é uma mercadoria e a tecnologia é mais um fardo do que um benefício.
O que torna o Cyberpunk realmente punk?
A partir dessas obras, os componentes do cyberpunk proliferaram, assumindo inúmeras formas ao longo dos anos em todas as formas de entretenimento. Ao longo de tudo isso, o cyberpunk existiu como um gênero “punk“, indo contra as instituições e ideologias convencionais.
Muitos trabalhos, como Akira, Juiz Dredd, Robocop e Matrix, mostram sociedades distópicas onde a tecnologia torna as coisas piores; no entanto, Dominion Tank Police, mangá escrito e ilustrado por Masumune Shirow, leva isso ao extremo, mostrando a polícia como agentes desonestos que causam mais danos do que criminosos. Outros trabalhos, como Total Recall, Battle Angel Alita, Ghost in the Shell e Tetsuo the Iron Man, enfocam como a mecanização altera a natureza humana.
Muitos dos primeiros trabalhos também contrariam os padrões sociais e falam para comunidades marginalizadas. Por exemplo, romances como Trouble and Her Friends, de Melissa Scott, mostram um elenco de personagens LGBT em uma sociedade ciberpunk opressora. Enquanto isso, Matrix tem uma metáfora em cores para a experiência da escolha. Esses trabalhos se opõem à ideologia heteronormativa para desconstruir os sistemas de controle da sociedade.
Cyberpunk moderno esquece de responsabilizar os sistemas
Embora muitas obras durante os anos 80 e 90 se concentrem em negócios corruptos, policiais trapaceiros e governos comprados, essa representação apresenta problemas. Muitos trabalhos do cyberpunk enfatizam que a corrupção na sociedade vem de outros países, já que as empresas japonesas são descritas como entidades estrangeiras perigosas que irão comprar as empresas americanas.
Ao mesmo tempo, muitos trabalhos cyberpunk evitam atacar figuras de autoridade como uma unidade. Existem indivíduos corruptos, mas o sistema, em teoria, poderia funcionar. O anime Bubblegum Crisis tem a Polícia A.D. como um sistema falho, mas necessário, para proteger a humanidade. Mesmo Ghost in the Shell, um dos maiores filmes de anime cyberpunk já feitos, apresenta a Seção 9 como figuras de autoridade bem intencionadas que são colocadas em conflito, devido à burocracia corrupta ao seu redor. Embora esses trabalhos sejam muito cibernéticos, eles não têm o punk de outras obras apresentadas.
Provavelmente o pior de tudo, muitas histórias cyberpunk usam a estética do cyberpunk para contar histórias divertidas sem a crítica, como visto em filmes como Hardware, Freejack e Armitage III. Enquanto isso, o romance Snow Crash de Neal Stephenson é amado pelos entusiastas do cyberpunk, mas ajudou a dar início a uma nova tendência, que é mais cyber e menos punk, e isso só pioraria nos anos seguintes.
O problema do estilo cyberpunk moderno
A última década viu o ressurgimento da ficção cyberpunk, mas a maior parte dela carece de crítica social. Algumas obras são punk, como Blade Runner 2049 e Altered Carbon da Netflix, que examina a autoridade e a natureza humana. Battle Angel Alita também mostra um mundo onde os ricos vivem literalmente em um paraíso flutuante acima dos pobres. Além disso, Ex Machina e o jogo SOMA desconstroem a natureza humana de uma forma minimalista, mas essas são as exceções.
O grande problema é que muitos trabalhos cyberpunk fetichizam a tecnologia em vez de mostrar como ela falha em melhorar a vida. Trabalhos como o romance, Jogador Nº1 (Ready Player One), de Ernest Cline, como sua adaptação para o cinema, dirigida por Steven Spielberg, quanto Sword Art Online, escrita por Reki Kawahara, celebram os sistemas de controle que prendem as pessoas. Apesar do mundo de Jogador Nº1 e sua sequência ser um pesadelo empobrecido, o trabalho se concentra em como a realidade virtual é legal, em vez de examinar a sociedade de forma significativa. Outros trabalhos, como os filmes Atualização (Upgrade) e Hardcore: Missão Extrema (Hardcore Henry), usam a tecnologia cyberpunk como veículo de ação. Mesmo o live-action de Ghost in the Shell e a animação SAC_2045 parecem superficiais.
De Cyberpunk 2077 em diante
Essas obras são quase inocentes em comparação com as obras cyberpunk que, no movimento menos punk de todos, reforçam os sistemas de autoridade. Trabalhos como a série Continuum, o jogo Detroit: Become Human (Epic Games), o anime EX-ARM, que tem uma animação ruim de doer e Cyberpunk 2077 apresentam mundos cyberpunk onde as grandes empresas, a polícia e os sistemas de governo são apoiados.
Continuum se concentra em um policial bom perseguindo terroristas ruins ao longo do tempo. Detroit: Become Human enfoca os androides como uma metáfora para as minorias oprimidas, mas a história coloca a culpa nas pessoas más, e não nos sistemas ruins. Por fim, Cyberpunk 2077, em um movimento que inverte as mensagens de Neuromancer e Blade Runner, concentra-se no personagem principal ajudando os policiais a pegar os criminosos.
Essas obras encorajam seguir as regras em vez de combatê-las. Existem bons trabalhos de cyberpunk por aí, mas o problema é que o cyberpunk superficial está ficando como um mar cada vez mais profundo. A rejeição em massa do cyberpunk de Cyberpunk 2077 pode encorajar os criadores a colocar o punk de volta no gênero ou então o cyberpunk apodrecerá no sistema.